Herberto Helder:

Teorema

El-Rei D. Pedro, o Cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, innocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos ammarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violente e melancólico do meu pobre Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste no meio do tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados.

King Dom Pedro the cruel is standing at the window above the small square which is at the foot of the statue of Marquês Sá da Bandeira. I like this mad, innocent and brutal king. The have forced me on the knees, the have bound my hands together on my back but I raise my head, turn my neck to the left and I see the cruel and melancholic face of my poor king. Below the window where the king stands there is another relic in manuelinic style, a fragile fabric made of stone defying wind and weather. Dom Pedro looks absentmindely on the square that has been locked by his soldiers.


Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com simpatia. Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defenderme, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Olho de novo para a janela onde debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri.

He sees the huge church of the priest seminary this eloquence made of glass and wall niches. He sees the doves sitting down on the head and the arms of Marquês and he sees me kneeing between some of his men. The king looks at me with pleasure. I have been found guilty to be one of the murderers of his preferred love, Dona Inês. Someone wanted to defend me and said that I was a patriot. I would have wanted to rescue the kingdom from Spanish influence. Nonsense. The Kingdom does not interest me. I have killed Dona Inês to rescue the love of the king. Dom Pedro knows it. Again I am looking to the window where he bends out. He is making a joke. All people lough.


— Preparam-me esse coelho, que tenho fome. O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.

«Prepare me this hare. I have hunger» The king is playing with my name. My family name is hare.


O que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas da gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres. Foi um terrível espectáculo que cidades e lugarejos apreciaram.

How this man has worked for our achievement! He ordered to carry the dead body from one location of the country to to another on the back of the people from the folk between torches and dirges. It was an awful spectacle which towns and villages enjoyed.


Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Levanto-me e fico bem defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta ver o meu suplício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.

Someone orders that I should stand up and thank my master. I stand up and I am directly in front of the building. In the first floor I see the sign Barber Vidigal and I see the barber with blond beard. He has come to the door to assist my execution. I see the manuelinian window and the king squeezed between the two buildings at both sides.


— Senhor, — digo eu — agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.

«Master», I say, «I am thanking you for my death. And I give you the death of Dona Inês as a present. It was necessary to rescue your love.»


— Muito bem — responde o rei. — Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.

«Very good», responds the king. «Tear him the heart out of his back and bring it to me.»


De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro. Distingo as vozes do povo, a sua ingênua exitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço de frio. Foi o punhal que entrou na carne e cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo do meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. A multidão grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao meio tempo, se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo. Percebo como tudo isto está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem. Ah, não tenho medo. Sei que vou para a inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.

I kneel down again and I see the feet of the executioners on both sides. I realize the voices of the folk, its guileless excitation. They are looking for a location on my back where they can thrust the dagger into. I shudder full of icyness. The dagger enters my flesh and cuts through some of my ribs. An impact cuts through my body from the top to the bottom and I experience my heart to be in the hands of one of the executioners. A page of the king waits with a tray of hammered silver; he extends it over my head; the reeky heart is put directly upon the tray. The crowd is screaming and applauding, just the face of Dom Pedro is sad, although deep in his innermost you can see a shining of triumph in it at the same time. I see how everything is connected, how it is necessary that one cause accomplishes the other. Ah, I have no fear. I know that I will go to hell because I am a murderer and my country is catholic. I have killed for love to love — something that testifys of a daemonic spirit. The king and his love are devilish creatures as well. Only the wife of the king, Dona Constança, is a creature of the heaven. No wonder when you see her insignificance, her brutishness and stupidity, her willingness to forgive every slight. I hate the wife of the king.


O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração é um molusco quente e sangrento. Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do parapeito da janela. O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsibilidade estar à frente de um povo assim. Felizmente o nosso rei encontra-se à altura do seu cargo, etende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.

The page is going up the staircase with the tray on which my heart lies like a warm, bleeding mollusc. We can see how Dom Pedro turns around how the tray appears near the window seat. The king smiles gently at my heart and lifts it up with his right hand. He shows my heart to the folk and the blood runs through his finders down his writh. Applause is to be heard. We are a pure and barbaric folk; it is a high responsibilty to stand at the top of such a folk. Fortunately the king can meet the altitude of his charge. He understands our gloomy, religious soul which is so closely tied to the earth. We are also a folk of divine trust and believe. We have trust and confidence in the war, in our system of justice, in the cruelty, in love and eternity. We are all crazy.


Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul do céu, acima dos telhados. Vejo uma pomba passar em frente da janela manuelina. O claxon de um carro expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pẽnis. Um moço vai perguntar ao rei se o podem fazer, mas este recusa.

I have fallen directly with my face on the paving stones; when I move my eyes I can realize a piece of the deeply blue sky above the rooftops. I see a dove which flies across a manuelinian window. The sound of a signal-horn spreads lyrically across the air. We are at the beginning of June. It is still spring. Earth is full of vitality. The earth is eternal. They are telling obscenities around me. Someone suggests to cut off my penis. A jouth goes and asks the king whether they would be allowed to do so but the king denies.


– Só o coração – diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este meu povo bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.

«Only the heart», he says. Again he lifts my heart and then he fiercely bites into it. The crowd is keen and like in trance, they are cheering at the king, they call me murderer, dog and they order my soul to the devil. I would like to be capable of thanking my pure and barbaric folk for its good and violent words.


Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o meu coração cheio da inteligência do amor e do sentimento da eternidade. O Marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do seu plinto de granito. As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. Aclama-o o povo mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima. Esta noite foi feta para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez que a sua inspiração não termine aí, e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D Inês tomou conta das nossas almas. Ela abandona a carne e torna-se um fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração. E que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.

A string of blood is running over the chin of Dom Pedro and I see how his jawbones move. The king is eating my heart. The barber has come out of his shop and is standing in the middle of the square with his white work coat and his blond mustache. He sees how Dom Pedro is eating my heart which is full of love and full of sense for eternity. Marquês Sá da Bandeira does not realize anything of all of that. He is standing green and colonialist on his pedestal made of granite. The doves are flying around. They are sitting down on his head and his shoulders shitting everywhere. Dom Pedro goes away from the public after having spoken a few words about crime and justice. The crowd jubilates a last time and then the people diverge. The soldiers go away as well and I am left alone to face the night which is approaching. This night was made for us, for the king and for me. We will reflect. We are both full of wisdom about the price of crime and our common love for eternity. The king is going to stay sleepless within his room. He knows he will love my sacrifice forever. Probably his ingenuity does not end here and he may turn even more cruel and imaginative. His body will fall apart through the inner fire and his passion will grow bigger and purer. I will grow by my death as well, I will grow inside the king who has eaten my heart. Dona Inês has undertaken the guard over our souls. She has abandoned the flesh and she is turning to a source, to a flame. She is coming into the poems and into the towns. There is nothing which is as incorruptible as her death. All three of use will stay pure forever in the melting pot of hell. The folk just needs to assimilate us as an aliment, generation for generation. Nobody should live in godliness. God will not be called to this place.